quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

QUO VADIS?

“Em verdade, em verdade vos digo: quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna, não entra em juízo, mas passou da morte para a vida.” Jo 5.24 (ARA)
“A porta em que estávamos batendo durante toda a vida finalmente se abrirá.” C. S. Lewis

Era manhã em Mogi das Cruzes. Os céus bruscos assemelhavam-se a um fino tapete prateado sem gravuras estendendo suas franjas para além do cimo dos verdes montes enevoados que circundam a cidade. Aquelas colinas são entalhadas de pequenas casas geminadas; algumas encavaladas e outras dispostas ao longo de um espaço linear com alguns intervalos de terra entre uma e outra construção. É uma paisagem quase bucólica, não fossem os diversos tipos de arranha-céus, intenso tráfego de veículos e transeuntes pelas ruas grandes e espaçosas na área urbana.
As nuvens despejavam um chuvisco insistente.O frio era inofensivo. Eu e meu sogro andávamos a procura do Hospital estadual instalado nas proximidades da Rodoviária Municipal depois de uma sacolejante e barulhenta viagem de trem recheada por conversas sobre assuntos tão vitais quanto à descoberta de que a celebridade fulana vai estampar a capa da próxima edição de duas diferentes revistas de ricaços brasileiros.
Nossas roupas e bonés começavam a umedecer ainda que lentamente. Os chinelos encharcados faziam meus pés produzirem um barulho estranho toda vez que calçava o chão.“Parece pato de borracha sendo apertado.” Disse baixinho, após recuperar-me d’alguns devaneios extemporâneos. Valdir riu com o canto da boca enquanto fitava a rua de paralelepípedos e levava uma das mãos ao bolso esquerdo da blusa preta aveludada que vestia. Tirou um papelote branco com o nome e endereço do local anotado à caneta, aproximou-o dos olhos — revelando certa dificuldade em enxergar letras miúdas —, e concluiu estar no caminho certo depois de examinar, com seus elevados um metro e sessenta de altura, a fachada vermelha do edifício à frente. Ameaçou ir numa direção diferente, no entanto, a caturrice habitual o impediu de andar por caminhos menos conhecidos.
Chegamos ao portão principal do complexo hospitalar. Paramos diante da placa informativa responsável por mostrar as diferentes entradas e setores do prédio público. Em poucos minutos estávamos no guichê de atendimento fazendo o cadastro de Valdir. Durante a entrevista dele com a simpática atendente, observei de esguelha o cartaz afixado na parede bege à esquerda do balcão pedindo aos acompanhantes de 18 e menores de 60 anos a não permanência no saguão, especialmente nas estofadas cadeiras verdes. Compreensível. Afinal o número de pessoas enfermas aguardando consulta médica nestes espaços é impressionante.
O fluxo de entra e sai de pacientes é outro fator digno de admiração. Avisei meu sogro que iria para fora, apontando para o papel mostrei-lhe a recomendação. “É melhor assim antes que esse segurança convide-me à rua”. Pensei durante minha saída à francesa.

Diante do portão de vidro havia uma escada de mármore marrom e pintas pretas circunscritas por riscos cinza-claros. À direita o corrimão branco serpenteava por alguns metros sempre acompanhando o declive do caminho da entrada anexa. Encostei-me quase no fim daquelas barras, de maneira que era perfeitamente possível ver as pessoas chegando, entrando e saindo do hospital. Saquei minha Bíblia e passei a lê-la calmamente em pé.

Após meia hora, levantei meus olhos, embora mantivesse o Livro seguro diante do meu rosto, para ver d’onde ecoava o som do choro abafado que voz nenhuma consolava. Duas senhoras sentadas em dois lances da escada de mármore se alternavam nas lágrimas.  Uma delas, cujas lágrimas e lamentos eram copiosos e sem intervalos longos, tinha a aparência daquelas vovozinhas típicas; cãs branquíssimas como a neve dos Alpes suíços. A outra, na casa dos quarenta anos tinha cabelos muito curtos e cor de ferrugem, suspeitei ser a filha dela.
O segurança tentou consolar a anciã, sem sucesso. Uma mulher que por ali passava tocada pela cena também esboçou alguma palavra reconfortadora, mas foi igualmente infeliz.
Depois de hesitar várias vezes fui até às mulheres. Perguntei para a filha o que estava ocorrendo. — Minha mãe está inconsolável porque meu pai foi acometido de câncer. Ele está em estado terminal. Ele veio para cá gritando de dor. Está sedado, pois as dores são muito, muito fortes! Pelo menos, o médico disse que morrerá com dignidade. Disse-me acanhada.
­— Posso orar por vocês?
— Sim, pode. Sabe, o que me consola é que eu sei para onde ele está indo. Para o céu de glória...
— Vocês são de confissão cristã?
— Sim...da Congregação Cristã no Brasil. Retorquiu a mulher.
—Desculpe, preciso atender ao telefone.
— Posso falar com sua mãe?
— Fique à vontade...alô?!

Sentei-me próximo da senhora. Ela olhou para mim e falou com voz trêmula: — Oi moço. Tentei entabular conversações. Mas, lembrei-me das palavras do pr. Eugene Peterson, que perdeu seu pai para a mesma doença anos atrás. Em linhas gerais: “há momentos em que as palavras devem ser mudas.”A dor recusa ser mitigada com palavrórios.
Então desisti de verbalizar consolações. Fiquei ali apenas ouvindo.
— Meu marido e eu estamos casados há sessenta anos e nunca brigamos. Sempre nos amamos. Andávamos de mãos dadas sempre. As pessoas diziam “lá vai o casalzinho”’. Ele é saxofonista na igreja. Mas agora moço, eu, eu... A voz ficou embargada e ela voltou a chorar com a cabeça apoiada na parede.

Chegaram uns parentes. Duas moças. Dei lugar às garotas na escada. Abraçaram a senhora, levantaram-na e já se iam embora. Foi quando uma delas de cor branca, blusa colorida, cabelos longos, lábios grossos, usando óculos de lentes que escurecia sob a luz do dia, virou-se para mim, fitou-me com olhos marejados e educadamente disse-me o tchau mais triste que já ouvi nesta minha curta vida.
A filha mais velha deteve-se no último lance de escada:
— Ore por nós. Para que Deus nos dê o consolo necessário. Exclamou aparentemente consternada.
Mirei aquele quarteto durante seu afastamento para longe até desaparecer por completo ao dobrar a esquina.
Ali com os braços apoiados no corrimão via os carros passarem velozmente pela avenida molhada. Uma mulher na calçada falava ao celular balançando freneticamente a mão direita.

Duas lições ficaram gravadas na minha mente: ouça mais, fale menos; E, mesmo apesar das dores experimentadas por quem ficar aqui momentaneamente, nós cristãos temos a certeza absoluta de que a morte, na verdade, é tão somente um até logo. Dolorido, eu reconheço.
Mas o que Jesus disse não pode ser mudado. Se com Ele vivermos e morrermos, as portas do Paraíso serão abertas nas primeiras batidas.

A chuva parou.     



Nenhum comentário:

Postar um comentário