sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

O PRESENTE

“E, tendo passado ali naquela noite, separou do que tinha um presente para seu irmão Esaú...” Gn 32.13
Enquanto dirigia-me para o escritório no primeiro cômodo de casa, passei vagarosamente em frente à estante de livros localizada na sala. Parei. Virei-me na sua direção passando a olhar as prateleiras durante certo tempo. Num instante, a acareação. Lá estava o ‘homem’.
Deitado sobre a parte de baixo das prateleiras, Fiódor Dostoievski descansava quietamente.
Eu havia derrotado o barbudo de Moscou havia poucos meses. Esbocei um sorriso sarcástico, cheio de empáfia por causa da derrota que lhe impus no entrevero recente. Depois deste arroubo ‘pavônico’, pude notar que seus ferimentos exigiam cuidados. Levei-o para a mesa da cozinha onde a xícara de café solúvel com leite fumegava a espera do meu retorno. Belisquei guloseimas, puxei a cadeira e sentei-me apoiando os cotovelos sobre o retângulo fórmico de cor branco com detalhes laterais pretos. Cuidadosamente ia espalhando cola na vertical da parte de dentro da capa — na frente dela havia o desenho de um homem ajoelhado vestido num sobretudo verde cujas mãos concheadas seguravam a testa e a têmpora indicando indizível sofrimento, mas sendo consolado por uma mulher de cabelos ruivos repartidos por tranças à moda Rapunzel — e contracapa que continha listagem de romances publicados; estavam meio rotas e bastante soltas. Lembrei-me do dia em que meu cunhado — irmão mais velho da minha esposa—, presenteou-me com este exemplar em português de Crime e Castigo adquirido no sebo. Foi uma surpresa. “Por que isso?” Pensei rápido. Não importa, presente não é medalha de honra ao mérito. Posto que os esforços fazem-no merecedor. Agradecer e desfrutar do dom gratuito são a melhor coisa a fazer. 
O livro é obra-prima do escritor russo. Durante mais de quatrocentas páginas Fiódor desfia uma trama cheia de detalhamentos sofisticados, nuanças nervosas, personagens ricas sobejando emoções represadas aliadas a desordens psicológicas. Marca ‘dostoievskiana’ indelével.
Numa dessas noites de leitura as falas das personagens causaram-me estranheza. Resolvi investigar aquelas páginas amareladas pelo tempo. Descobri que o velho livro havia sido composto, pasme, numa tipografia da cidade de Lisboa, capital de Portugal. Ora, o português falado no Brasil, mesmo o de décadas atrás, tem singularidades que precipitaram sua emancipação do que é falado na terra de Pero Vaz de Caminha. Atualmente, vemos isso melhor na hora de decidir o português usado nos programas de computador a ser instalados na máquina. Portanto, eu tinha nas mãos não somente uma obra clássica, mas igualmente rara. Legítimo item de colecionador. É incrível o que se pode achar nestes sebos espalhados pela paulicéia desvairada.
Fico imaginando esta preciosidade anos sem conta passeando de mãos em mãos desde a terra lusitana até cair nas minhas. Veio-me à memória o encontro unitivo de Esaú e Jacó. Este, após muitos anos, agraciou o irmão de dádivas provocando-lhe surpresa.
O Senhor fez assim conosco. Deu-nos dádiva inigualável sem que a merecêssemos ou esperássemos. Enviou seu Filho Bendito para expurgar nossos malcheirosos pecados mediante sua morte vicária no monte Gólgota. Éramos dignos, na verdade, de açoites e danação eterna. Entretanto, o Pai anulou esta sentença transitada em julgado. Cabe-nos agora, ouvir sua voz, abandonar o viver iníquo e impudico, deixando todas as maldades para trás, enquanto caminhamos gratos pelas veredas do Senhor Jesus.




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