terça-feira, 10 de janeiro de 2012

AS CRÔNICAS DA CRUZ: OS FUGITIVOS

A história a seguir se baseia nos eventos narrados no evangelho de Marcos 14.32-52
As trevas vestem os céus na silente noite no Jardim das Oliveiras (Getsemâni). De repente, o silêncio é rompido por um pássaro noctívago que, num voo sobranceiro, pousa na copa das árvores agitando galhos e fazendo com que folhas mortas caíam sobre a grama rarefeita. Um vento gélido sopra a plumagem no peito do animal. A ave perlustra ininterruptamente todos os lados. Parece procurar alguém ou alguma coisa. Não muito distante dali, ouve-se um murmúrio tenaz vindo do chão. Um homem de roupas simples e umedecidas pelo próprio suor está prostrado com o rosto em terra; seus braços abertos na direção do chão, as mãos espalmadas e apoiadas no solo, os calos nas mãos revelam o tempo de serviço dedicado na carpintaria do vilarejo chamado Nazaré. Sob os raios lunares Ele vai cravando todos os dedos lentamente na terra até que suas mãos e unhas estejam cheias dela, ergue o dorso, levanta a cabeça para o alto, os olhos permanecem cerrados, seus lábios balbuciam coisas inaudíveis, o semblante parece aturdido, evidenciando dores ocultas; dos olhos começam a escorrer filetes de lágrimas.
As mãos repletas de terra são elevadas em direção ao céu empobrecido de estrelas. Desta vez Ele não está tomando do barro para fazer algo. A respiração está cada vez mais arquejante. Porém ele não está prestes a soprar o fôlego de vida nos pulmões de outra criação distinta.
Totalmente aferrado à oração, Jesus de Nazaré descortina a alma açorada pela atenção do Pai Eterno.
As dores excruciantes da morte avançam a passos ligeiros na direção do sopé do monte onde estão o Mestre, e os discípulos dessorados ressonando nas pedras. As tochas iluminam o caminho acidentado daquele que parece ser um grupo de pessoas insones egresso do centro da cidade de Jerusalém. Quando a luz das tochas que carregam permite, veem-se faces com linhas graves, soturnas, testas excessivamente franzidas, sobrolhos arqueados e espessas barbas negras. Há neste contingente um vozerio cauteloso e intrincado. Malco, servo do sumo sacerdote do templo dos judeus, topa num toco e pragueja, hesita por instantes, com as maças do rosto levemente ruborizadas continua a andar pela relva. Os companheiros fazem galhofa do acidente. Todos riem em uníssono. De súbito, uivos ecoam pelos arredores daquele terreno. Ouvem-se grunhidos emanarem da traseira da numerosa turba que de imediato desembainham espadas nuas, brandindo-as da destra para a sestra enquanto viram as costas um para outro, dando passos lentos para trás, até estarem dispostos num semicírculo de defesa que aguarda o ataque iminente. Ventos sussurram na nuca dos homens. Depois, nada mais é ouvido. Apenas o som do terreno pedregoso sendo pisado pelos muitos pés.
Dentro de alguns instantes o Filho do Altíssimo estará nas mãos desta corja. Há poucos metros de onde Jesus está orando sofregamente os discípulos dormem alheios ao desenrolar dos acontecimentos; Desconhecem a situação na qual são alvos periclitantes. O Senhor se levanta, limpa os joelhos e as mãos, caminha até eles, fita-os, meneia a cabeça rapidamente e os acorda. A súcia chega repentinamente armada de varapaus, pedras e tochas cujas luzes alumiam ambas as partes: caçados e caçadores. Um homem se pronuncia a frente do grupo que fora conduzido por ele até àquele lugar. Ele encara o Mestre demoradamente. Os discípulos às costas do Messias, ainda embriagados de sono, firmam a vista na direção daquele vulto arrostando o primeiro filho de Maria. Parece familiar. “É Judas Iscariotes” diz Pedro. “Nosso tesoureiro?” Tiago pergunta olhando com dificuldade para João. Um Judas despudorado saúda efusivamente seu antigo Mestre. De braços abertos aproxima-se do Cordeiro de Deus e deita-lhe um beijo traiçoeiro numa das faces. Os oficiais prendem o Salvador imediatamente. Os seguidores dEle agora despertos começam a temer por suas vidas; as pupilas se dilatam, a adrenalina corre fogosa e galopante pelas veias. Quando os guardas investem contra os apóstolos, estes, porém, fogem rapidamente embrenhando-se nas matas. Deixando Jesus para trás.
 Jesus é levado sob a custódia dos levitas do templo. Ele será conduzido pela turba ao julgamento pelo sinédrio de Jerusalém. Alguém nota um rapaz, envolto em lençóis, seguindo Jesus a certa distância. Tentam prendê-lo. O moço larga os panos e foge correndo nu da presença de Jesus e da guarda. Assim como Adão também correu de diante do seu Criador quando prevaricou. “Deixem esse filho de Belial ir embora, já temos o que queríamos!” Esbraveja um oficial caolho, barba loura e rala, rosto delgado e que aparentava meia-idade.
Os homens jubilosos do sucesso na prisão de Cristo retornam na direção da Cidade Santa fazendo motejo do rapaz nu e dos discípulos fugidiços. O riso sarcástico ecoa por todos os lados enquanto as nuvens cobrem a lua. Uivos novamente.

O Cordeiro de Deus está só, no meio de lobos.

— Ei! Acorda! Acorda!
— O quê? Hã? O que foi?
— Onde estão seus lençóis? Por que você está nu?
— Eu...eu...er...eu...Meu Deus, não! Não pode ser! Não!
João Marcos não estava tendo um pesadelo.

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